quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

De novo o mundo perdido da psicologia experimental antes de Wundt

Eis que nos deparamos com um fóssil vivo da história da psicologia: o livro de L. E. Bautain, de 1839, que se chama "Psicologia experimental" (aceito de bom grado este livro como um presente)! É um tratado, hoje raro, mas não raro na época. Na época, já existiam monografias, livros, tratados, todos sobre a chamada psicologia experimental. Inclusive,  um dos escritos de Kierkegaard leva como subtítulo o seguinte: "uma especulação em psicologia experimental" (só não se engane, meu caro leitor, em crer que tais textos versam sobre o mesmo tema). 
Para ter passado pelo discurso de Comte, ainda que para rejeitá-la, deve ter havido já consolidada tal concepção, a de uma psicologia experimental. Este é mais um dos detalhes interessantes da história desta ciência: Comte rejeitou a possibilidade da psicologia (experimental [1]) como ciência, pois afirmava ser impossível o sujeito, ele mesmo o conhecedor, conhecer-se a si mesmo; isto, em sua concepção, acarretaria uma divisão, sobretudo impossível, do sujeito. Como seria possível ao sujeito conhecer-se, já que é ele o conhecedor, aquele que conhece? Para Comte, impossível. A psicologia não seria uma ciência (positiva). Wundt reage àquela proposição de Comte, a saber, a de que o sujeito não pode se conhecer, assim também possibilitando à psicologia ser ciência. Se não tomarmos esta reação, esta, por assim dizer, contradição na história da psicologia, esta própria história estará falseada, ou mesmo falsificada, pois não tomará conta da ruptura e descontinuidade que há entre Wundt e Comte, além de apagar a história do método utilizado por Wundt, a saber, a introspecção (a introspecção é revivescida e colocada em relação a uma estrutura, a científica, que lhe dá outro sentido: ela já existia como um "método", lato sensu, na filosofia, principalmente utilizado pelos céticos; e é através da introspecção que Wundt apresenta a possibilidade desta nova psicologia experimental). Não é só aqui que existe esta ruptura, mas por todo o lado, em cada lacuna que esta história comum da psicologia, paradoxalmente, sedimenta. A cada continuidade e aparente harmonia que esta história comum da psicologia narra, surge, por outro lado, uma lacuna insuperável e que calca esta própria narrativa, mas permanece oculta, pois não é falada, não é narrada, e isto, por sua vez, é um erro: constroi-se uma história única, unilateral, sem contradições, sem lutas, sem disparidades, quando, na verdade, são estas que fundamentam a narrativa que é feita. Estas contradições, deve-se notar, repelem, muitas vezes, textos para todos os lados, junto de suas concepções, e elas são todas apagadas. Assim, o que vemos, na linha histórica que se prolonga através narrativa feita, são teorias que substituem umas às outras por sua aparente superioridade (teórica ou técnica) ou mesmo por sua inovação (amiúde ilusória); vemos muitos textos e concepções sob um mesmo rótulo ou nome, quando, em um olhar mais apurado, jamais poderiam ocupar um mesmo espaço, uma mesma categoria; vemos as inovações, mas não vemos as mudanças estruturais, em geral teóricas, que são feitas para suportar tais inovações; vemos isto e mais um punhado de coisas. Tudo parece, à primeira vista, muito harmônico, quase que com uma razão de ser inerente a si mesmo, com uma clareza insuperável, dispensando qualquer pensar sobre aquele amontoado de dados e textos que se acumulam em um livro de história. Porém, isto tira não só o privilégio da discordância e da inovação, como também, muitas vezes, repele a sua potência ou mesmo a sua possibilidade. 
Como pensar o diferente se tudo parece caminhar para um único fim; como o fazer se tudo é tão perfeito que um único movimento esfacelaria toda a estrutura; como o fazer se tudo foi inovação temporária, se não houve nenhum "pensamento" propriamente dito que fosse diferente, senão um uso mais apropriado de ferramentas e técnicas? Como? Vê-se, aqui, que a história não é e nada tem de mera coleção de fatos, de mero acúmulo de dados, de mera contemplação (teoria), mas está sobretudo ligada à ação criativa que o presente reclama, ao que se poderia chamar de práxis, ao que importa para o presente como contribuição decisiva ao fazer (poésis), sendo que tal é a atitude fundamental do humano em relação ao tempo. Assim, pelo que me parece, falta à história da psicologia, a que nos é apresentada em um curso de graduação como unitária, pelo menos, falta a ela a ênfase nestas mudanças, nas contradições, nos distanciamentos, nos fundamentos díspares, nas disputas teóricas, metodológicas e também as políticas, como também nas ações decisivas que foram reclamadas nos diversos tempos de inovação, quer dizer, na criatividade, e também na possibilidade de criação que estes textos oferecem a nós, psicólogos do presente, como também aos outros, os psicólogos do futuro.
Este período de que tratamos (da disputa Comte-Wundt e antes) parece ser um terreno profícuo para pesquisas mais apuradas não só sobre os documentos históricos, mas também sobre a natureza das teorias, de seus conflitos, de suas diferenças, quer dizer, de uma apuração epistemológica destes textos que nos são entregues em mãos, uma que seja capaz de revelar as linhas de divergência que são criadas e assim também os ramos e galhos que delas surgem com o passar do tempo e com o agregar de outros teóricos e outros textos. Talvez não possamos falar de uma "árvore" do conhecimento psicológico, mas talvez ocorra que as diversas linhas divirjam umas das outras neste período, porém, distanciando-se em um período posterior, agreguem-se a outros textos, outros argumentos, em uma forma de pensar (se é que este termo é mesmo válido) mais ou menos semelhante, o que implica ser diferente de maneira análoga. Sabemos que, neste período, agregam-se saberes já muito diversos e que, como que em uma fórmula química perigosa, engendram, ainda que não diretamente, outras disputas posteriores, principalmente no século XX, mas que não acabam nisto, mas que podem ainda animar outros tipos de atividades e pesquisas, outras formas de pensar, outras possibilidades e alternativas. Sabemos que, antes mesmo do século XIX, Kant já possuía uma definição do que seria psicologia e a faz precisamente em sua Lógica; que Hegel também a define em sua Enciclopédia e que Kierkegaard, anos mais tarde, discorda desta definição (ver este artigo); que a psicologia não é uma coisa só e talvez jamais o seja, bem como acontece com um punhado de outras ciências. Porém, pelo que me parece, ainda não sabemos exatamente o que fazer com isso, como desenvolver propriamente uma pesquisa em psicologia, já que também não sabemos o que seria o (se é que o artigo pode permanecer assim, no singular) objeto de estudo desta ciência; ainda não sabemos fazer esta memória da ciência psicológica animar os estudos do presente, não sabemos quão valiosa é esta história e o quão valiosa ela pode ser de hoje em diante. Ou será que tudo isto não passa de mero assombramento do passado, de mero intelectualismo nostálgico e que todas as respostas para o que precisamos, nós pesquisadores, estarão no presente e no que ele nos oferece, isto é, no que as tendências e teorias atuais podem oferecer? Será este o destino derradeiro do pesquisador, aceitar de bom grado as teorias vigentes e manter-se na atitude de não se rebelar contra elas, de não (e este é o ponto) produzir novo conhecimento?
Pois bem, tudo isto nos mostra que, ao fundo, o nosso papel é também fazer reviver esta história, este amontoado de registros (obviamente, presentes) que nos ligam com o tal passado, e torná-la algo que possa nos ajudar a agir em relação a este nosso tempo e, por nossa vez, produzir conhecimento que não seja obsoleto, que não seja anacrônico, que não seja ineficaz, que não nos deixe na mão; quer dizer, precisamos, ainda, aprender a criar.

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[1] A psicologia experimental era o que poderia passar mais perto da concepção comteana de ciência, mas ainda assim, como se segue, não era o que ele achava.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Nota sobre os últimos comentários (Interlúdio).

            No último post, deixamos muitas questões em aberto e muitas coisas nas entrelinhas. Poder-se-ia, inclusive, dedicar uma tese a alguns temas ali presentes. Para melhor esclarecer um dos pontos, vamos acrescentar uma nota de valia ao post. Trata-se, aqui, da questão do eu transcendental e do eu empírico. A minha perspectiva para aclarar o significado da questão parte do posicionamento de Edmund Husserl, famoso empreendedor da fenomenologia como "filosofia rigorosa". Isto não quer dizer que a questão seja pura e simplesmente "fenomenologista". Parto de Husserl [*] para compreender o desenvolvimento da questão desde Descartes, e a mesma questão pode ser encontrada tanto nos textos de Descartes quanto nos de seus contemporâneos e outros posteriores (chegando, claro, até Husserl, embora não cesse aí).

Instaura-se, com Descartes, um privilégio do sujeito pensante nas questões filosóficas. O fundamental, em Descartes, não é um solipsismo, que ele, inclusive, supera com o argumento ontológico-teológico (Deus é quem garante a existência das coisas aí), tampouco uma forma de idealismo ou mesmo de racionalismo. Estas questões são contingentes. O fundamental é o privilégio do pensar sobre as condições do pensar a partir do sujeito que pensa. Quer dizer, é a busca de fundamentar a filosofia, ou uma visão de mundo, ou a ciência, na questão do conhecimento, isto é, na epistemologia (lato sensu). Heidegger encontrará, aí, mais uma expressão do que ele chama do "esquecimento do ser". Na esteira de Heidegger, Derrida, por sua vez, dirá que é expressão do logocentrismo inaugurado por Platão. Heidegger e Derrida são expressões diferentes de um mesmo discurso. Heidegger interpreta o mito da caverna como o surgimento do esquecimento do ser. A questão do ser é suprimida em virtude de um pensar sobre o conhecimento. Se nos lembrarmos, o mito da caverna nada mais é do que uma metáfora sobre os caminhos do conhecimento, a busca da correspondência entre logos (razão) e phýsis (realidade). Apenas aquele que supera as meras aparências das sombras é capaz de alcançar a verdade. Instaura-se, portanto, a verdade como correspondência entre razão e real. É exatamente isto o que Derrida chama de logocentrismo. Portanto, para os heideggerianos, desde Platão até a modernidade (até Heidegger), incluindo até mesmo Nietzsche, vigora a chamada "metafísica da subjetividade", em que o sujeito (hypokeimenon) tem papel central. Sujeito, aqui, significa exatamente isto: aquele que está sob; é o fundamento. Em tais circustâncias, Heidegger busca apoio em ninguém menos do que Heráclito e Parmênides, na busca de recuperar o sentido da verdade como Alétheia, ou seja, como desvelamento [**].

Pois bem, retornemos à distinção entre eu transcendental e eu empírico (ou fenomênico), a qual está estreitamente vinculada à questão da subjetividade. Reconheço que haja a necessidade de investigarmos melhor esta questão, particularmente nas diferenças marcadas nos textos de Husserl, Heidegger e Sartre.

Vou publicar o post, mas ele está, evidentemente, inacabado. Ainda terei de tecer alguns pontos. São eles, para que eu não me esqueça: 1) Descartes e o cogito; 2) Kant; 3) Condillac; 4) definição da psicologia; 5) psicologia e filosofia: conflitos e contradições.


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[*] Particularmente, a seguinte obra: HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas: Introdução à fenomenologia. Tradução Frank de Oliveira. São Paulo, SP: Madras, 2001
[**] Para esta questão, Cf. CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. Série Compreender. Petrópolis: Vozes, 2009. pp. 147 e segs.
       Para os heideggerianos, o sujeito deve ser subvertido. Como diz Gianni Vattimo, um heideggeriano, “há algo não funcionando na estrutura mesma do sujeito” (p. 22). Com Heidegger e Nietzsche, para Vattimo, opera-se um "despedir-se da subjetividade" (p. 34), um "ultrapassamento do sujeito" (p. 34). Cf. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. Eduardo Brandão. 2.a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Para Alain Renaut, por sua vez, o movimento heideggeriano se assenta num equívoco: o da incompreensão da distinção entre sujeito e indivíduo. Cf. RENAUT, Alain. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. Trad. Elena Gaidano. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.

domingo, 10 de outubro de 2010

Comentários sobre a psicologia e sua história (parte I)



Busquemos investigar brevemente a psicologia e os seus fundamentos. Comecemos por questionar a sua natureza, ou seja, o que a psicologia é. Ao fazer esta pergunta, como aponta Foucault[1], perguntamo-nos, também, se ela é uma ciência. A psicologia surge como proposta de ciência, amiúde, como consta nos manuais de História da Psicologia[2], considerada como “uma ciência independente”, resultado de um projeto de Wundt. Esta, no entanto, como se poderia observar, não é uma tese convincente; é uma tese demasiado personalista. Colocamos o projeto científico da psicologia todo a cargo do projeto de um indivíduo: Wilhelm Wundt. É certo que a fundação de seu laboratório em 1879 seja um marco na história da psicologia. Mas, aceitar isto como um evento sem estrutura é destruir a sua própria condição de estar na história. Colocar Wundt na gênese da psicologia é correto apenas em um sentido bem estrito: foi ele o fundador do primeiro laboratório – uma instituição localizável no tempo e no espaço – de psicologia fisiológica da história humana; por isto, ele foi o primeiro a se utilizar desta técnica no interior da estrutura científica consensualmente construída ao longo da história e vigente na época, com todo o seu aparato assertório ou afirmativo (do que pode e do que não pode ser dito), condicional (como pode ser dito e como não pode ser dito) e corretivo (do que foi dito, mas foi contradito e precisa ser, portanto, readequado, corrigido). Por outro lado, colocar Wundt na gênese da psicologia como proposta científica me parece errôneo: em primeiro lugar, Ernst Weber já realizava pesquisas antes da fundação do laboratório e os Elementos de psicofísica de Gustav Fechner já haviam sido publicados 19 anos antes (1860), o que indica que o projeto de uma psicologia científica já existia antes desta data; em segundo lugar, o próprio Wundt tem trabalhos de psicofísica publicados em 1862, embora escritos antes; em terceiro lugar, deve-se considerar que o termo psicologia já era usado séculos antes, por exemplo, por Kant em sua Lógica, mas com um sentido diferente; em quarto lugar, em acréscimo ao ponto anterior, que o termo psicologia científica é mais sintético (extensivo) do que analítico (explicativo), pois acrescenta algo (“científico”) ao que era considerada a psicologia anteriormente – em suma, um estudo dos elementos empíricos do sujeito pensante, os quais eram variáveis, o que era secundário na filosofia, já que a sua tarefa essencial, desde Descartes, seria determinar o eu apesar das variações empíricas, ou seja, o eu transcendental; em quinto lugar, que a fundação da psicologia não pode ser considerada como um evento isolado, tampouco personalizado, mas como uma tendência mais ou menos disseminada, apesar de esta disseminação aparecer ou não nos textos; em sexto lugar, de forma a acrescentar algo ao último ponto, que um texto específico e localizado não indica que o seu conteúdo também o seja ou que este texto seja a própria gênese deste conteúdo ou sua fonte, pois, apesar de não aparecer no texto, o intertexto (ou seja, aquilo que circunda o texto, em termos de tempo e espaço, e que o sustenta por suas relações com ele) tem a “potência” do dito do texto e tal circunstância pode levar o dizer à variação em tempo e espaço, ou seja, à sua disseminação, conforme dissemos anteriormente. Assim, parece que nos é mais razoável descartar a ideia de uma psicologia centrada em Wundt, a qual trata mais de dificultar o acesso ao que ela é do que facilitá-lo.
No próximo post, começaremos pela pergunta: o que é ciência para considerarmos a psicologia como científica?



[1] Psicologia e filosofia: entrevista a Alain Badiou (1965). Consta nos Ditos e Escritos, vol. 1.
[2] Ver, por exemplo, o famoso livro de Schultz e Schultz sobre o tema (História da psicologia).

sábado, 18 de setembro de 2010

Introdução

          Nossa ciência é jovem em comparação às diversas ciências naturais e sociais. Pouco mais de cem anos é o que temos, de uma prática de difícil definição. Tamanha diversidade, desde os eixos epistemológicos até diferenças metodológicas sutis, nos faz muitas vezes perder a unidade  do que é ser um "Psicólogo", rótulo atualmente mantido por interesses institucionais, econômicos e histórico-políticos. Admitir a alteridade já é um começo para entender o percurso e o estado atual da psicologia científica. Muitas vezes, tamanhas diferenças impossibilitam o trabalho e o crescimento acadêmico; acompanho colegas dizendo que se sentem fazendo cursos diferentes, e de certo modo eles estão certos. Como dialogar com definições de homem tão distintas? Uma unidade de idéias na psicologia é, como espero que concordem, impossível, porém a intersecção entre determinada área da psicologia e outras ciências como a antropologia, sociologia, neurociência, fisiologia, urbanismo, direito, computação, farmacologia, linguagem, entre outras inúmeras, faz-se necessária, devido a complexidade das relações humanas, seja qual for o modelo de homem empregado; complementar o conhecimento psicológico com outras ciências mais sólidas como a biologia, por exemplo, apenas fortalece a psicologia. 
          Independente do porto de partida, uma análise psicológica é complexa e necessita de uma densa estrutura filosófica e metodológica. Vemos uma infinidade de pseudociências baseadas no senso comum com roupagem científica psicológica, inúmeros livros de auto-ajuda e teorias quase mágicas nas prateleiras de psicologia nas livrarias. Como trabalhar com uma ciência tão complexa? Uma dica é escolher sua abordagem, dialogar com ciências compatíveis com seus eixos epistemológicos, combater a pseudociêcia, e saber que existem diversos outros homens que pensam diferente de você, trabalhando com o mesmo rótulo, e saber que uma unidade de ação, não de idéias pode ser possível; atuar por nossa ciência, por nosso espaço. Mas essa é apenas minha opinião.