quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Nota sobre os últimos comentários (Interlúdio).

            No último post, deixamos muitas questões em aberto e muitas coisas nas entrelinhas. Poder-se-ia, inclusive, dedicar uma tese a alguns temas ali presentes. Para melhor esclarecer um dos pontos, vamos acrescentar uma nota de valia ao post. Trata-se, aqui, da questão do eu transcendental e do eu empírico. A minha perspectiva para aclarar o significado da questão parte do posicionamento de Edmund Husserl, famoso empreendedor da fenomenologia como "filosofia rigorosa". Isto não quer dizer que a questão seja pura e simplesmente "fenomenologista". Parto de Husserl [*] para compreender o desenvolvimento da questão desde Descartes, e a mesma questão pode ser encontrada tanto nos textos de Descartes quanto nos de seus contemporâneos e outros posteriores (chegando, claro, até Husserl, embora não cesse aí).

Instaura-se, com Descartes, um privilégio do sujeito pensante nas questões filosóficas. O fundamental, em Descartes, não é um solipsismo, que ele, inclusive, supera com o argumento ontológico-teológico (Deus é quem garante a existência das coisas aí), tampouco uma forma de idealismo ou mesmo de racionalismo. Estas questões são contingentes. O fundamental é o privilégio do pensar sobre as condições do pensar a partir do sujeito que pensa. Quer dizer, é a busca de fundamentar a filosofia, ou uma visão de mundo, ou a ciência, na questão do conhecimento, isto é, na epistemologia (lato sensu). Heidegger encontrará, aí, mais uma expressão do que ele chama do "esquecimento do ser". Na esteira de Heidegger, Derrida, por sua vez, dirá que é expressão do logocentrismo inaugurado por Platão. Heidegger e Derrida são expressões diferentes de um mesmo discurso. Heidegger interpreta o mito da caverna como o surgimento do esquecimento do ser. A questão do ser é suprimida em virtude de um pensar sobre o conhecimento. Se nos lembrarmos, o mito da caverna nada mais é do que uma metáfora sobre os caminhos do conhecimento, a busca da correspondência entre logos (razão) e phýsis (realidade). Apenas aquele que supera as meras aparências das sombras é capaz de alcançar a verdade. Instaura-se, portanto, a verdade como correspondência entre razão e real. É exatamente isto o que Derrida chama de logocentrismo. Portanto, para os heideggerianos, desde Platão até a modernidade (até Heidegger), incluindo até mesmo Nietzsche, vigora a chamada "metafísica da subjetividade", em que o sujeito (hypokeimenon) tem papel central. Sujeito, aqui, significa exatamente isto: aquele que está sob; é o fundamento. Em tais circustâncias, Heidegger busca apoio em ninguém menos do que Heráclito e Parmênides, na busca de recuperar o sentido da verdade como Alétheia, ou seja, como desvelamento [**].

Pois bem, retornemos à distinção entre eu transcendental e eu empírico (ou fenomênico), a qual está estreitamente vinculada à questão da subjetividade. Reconheço que haja a necessidade de investigarmos melhor esta questão, particularmente nas diferenças marcadas nos textos de Husserl, Heidegger e Sartre.

Vou publicar o post, mas ele está, evidentemente, inacabado. Ainda terei de tecer alguns pontos. São eles, para que eu não me esqueça: 1) Descartes e o cogito; 2) Kant; 3) Condillac; 4) definição da psicologia; 5) psicologia e filosofia: conflitos e contradições.


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[*] Particularmente, a seguinte obra: HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas: Introdução à fenomenologia. Tradução Frank de Oliveira. São Paulo, SP: Madras, 2001
[**] Para esta questão, Cf. CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. Série Compreender. Petrópolis: Vozes, 2009. pp. 147 e segs.
       Para os heideggerianos, o sujeito deve ser subvertido. Como diz Gianni Vattimo, um heideggeriano, “há algo não funcionando na estrutura mesma do sujeito” (p. 22). Com Heidegger e Nietzsche, para Vattimo, opera-se um "despedir-se da subjetividade" (p. 34), um "ultrapassamento do sujeito" (p. 34). Cf. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. Eduardo Brandão. 2.a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Para Alain Renaut, por sua vez, o movimento heideggeriano se assenta num equívoco: o da incompreensão da distinção entre sujeito e indivíduo. Cf. RENAUT, Alain. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. Trad. Elena Gaidano. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.

domingo, 10 de outubro de 2010

Comentários sobre a psicologia e sua história (parte I)



Busquemos investigar brevemente a psicologia e os seus fundamentos. Comecemos por questionar a sua natureza, ou seja, o que a psicologia é. Ao fazer esta pergunta, como aponta Foucault[1], perguntamo-nos, também, se ela é uma ciência. A psicologia surge como proposta de ciência, amiúde, como consta nos manuais de História da Psicologia[2], considerada como “uma ciência independente”, resultado de um projeto de Wundt. Esta, no entanto, como se poderia observar, não é uma tese convincente; é uma tese demasiado personalista. Colocamos o projeto científico da psicologia todo a cargo do projeto de um indivíduo: Wilhelm Wundt. É certo que a fundação de seu laboratório em 1879 seja um marco na história da psicologia. Mas, aceitar isto como um evento sem estrutura é destruir a sua própria condição de estar na história. Colocar Wundt na gênese da psicologia é correto apenas em um sentido bem estrito: foi ele o fundador do primeiro laboratório – uma instituição localizável no tempo e no espaço – de psicologia fisiológica da história humana; por isto, ele foi o primeiro a se utilizar desta técnica no interior da estrutura científica consensualmente construída ao longo da história e vigente na época, com todo o seu aparato assertório ou afirmativo (do que pode e do que não pode ser dito), condicional (como pode ser dito e como não pode ser dito) e corretivo (do que foi dito, mas foi contradito e precisa ser, portanto, readequado, corrigido). Por outro lado, colocar Wundt na gênese da psicologia como proposta científica me parece errôneo: em primeiro lugar, Ernst Weber já realizava pesquisas antes da fundação do laboratório e os Elementos de psicofísica de Gustav Fechner já haviam sido publicados 19 anos antes (1860), o que indica que o projeto de uma psicologia científica já existia antes desta data; em segundo lugar, o próprio Wundt tem trabalhos de psicofísica publicados em 1862, embora escritos antes; em terceiro lugar, deve-se considerar que o termo psicologia já era usado séculos antes, por exemplo, por Kant em sua Lógica, mas com um sentido diferente; em quarto lugar, em acréscimo ao ponto anterior, que o termo psicologia científica é mais sintético (extensivo) do que analítico (explicativo), pois acrescenta algo (“científico”) ao que era considerada a psicologia anteriormente – em suma, um estudo dos elementos empíricos do sujeito pensante, os quais eram variáveis, o que era secundário na filosofia, já que a sua tarefa essencial, desde Descartes, seria determinar o eu apesar das variações empíricas, ou seja, o eu transcendental; em quinto lugar, que a fundação da psicologia não pode ser considerada como um evento isolado, tampouco personalizado, mas como uma tendência mais ou menos disseminada, apesar de esta disseminação aparecer ou não nos textos; em sexto lugar, de forma a acrescentar algo ao último ponto, que um texto específico e localizado não indica que o seu conteúdo também o seja ou que este texto seja a própria gênese deste conteúdo ou sua fonte, pois, apesar de não aparecer no texto, o intertexto (ou seja, aquilo que circunda o texto, em termos de tempo e espaço, e que o sustenta por suas relações com ele) tem a “potência” do dito do texto e tal circunstância pode levar o dizer à variação em tempo e espaço, ou seja, à sua disseminação, conforme dissemos anteriormente. Assim, parece que nos é mais razoável descartar a ideia de uma psicologia centrada em Wundt, a qual trata mais de dificultar o acesso ao que ela é do que facilitá-lo.
No próximo post, começaremos pela pergunta: o que é ciência para considerarmos a psicologia como científica?



[1] Psicologia e filosofia: entrevista a Alain Badiou (1965). Consta nos Ditos e Escritos, vol. 1.
[2] Ver, por exemplo, o famoso livro de Schultz e Schultz sobre o tema (História da psicologia).